quinta-feira, março 06, 2008

O Desafio da Vida


Gostaria de dar um titulo a este post mas nem sei bem qual. Por um lado porque me ia tornar repetitiva, por outro lado acho feio o outro titulo que me surge. Ainda assim, é melhor escolher para titulo "O Desafio da Vida".

Domingo à noite. São 06h da manhã e já falta pouco para terminar o turno. Tou mortinha por chegar a casa e dormir. Ainda há camas vagas onde me encontro. Até as 08h ainda podem entrar muitos doentes...

Eis que chega uma velhinha. Vai para uma das minhas camas. 91 anos, bem disposta, veio ás urgências porque lhe doia a barriga á 2 dias. Olhando para ela nada faria advinhar que estaria doente. É uma daquelas velhotas todas catitas, que apetece apertar as bochechas e dar mimos. Reservada, só responde ao que lhe é perguntado. Diagnóstico: Isquemia da artéria mesentérica.

Para terem uma noção a artéria mesentérica tem origem directa na artéria aorta (que é simplesmente a maior artéria que temos e digamos que a mais importante). A mesentérica é responsável pela irrigação do intestino grosso. O que acontece nesta situação é que havia uma parte da artéria que não estava a ser irrigada pelo sangue e assim não tinha nutrientes para se manter "viva" assim como também não podia alimentar o intestino. Isto leva à necrose do instestino, ou seja, este morre. A infecção é também uma das complicações associadas. Por vezes quando a isquemia é grande, começa a faltar irrigação sanguinea nos restantes órgãos abdominais. Estes entram em falência, deixam de funcionar. Progressivamente o sangue vai faltando, os órgaos vão morrendo e o desfecho é um só... O tratamente tem de ser numa fase inicial, caso contrário... É como se fosse um enfarte no coração, mas neste caso é no instestino.

Quando esta senhora chegou, tal como ja referi, nada indicava que estava doente. Um colega meu observou de imediato os membros inferiores, porque geralmente costumam estar cianosados, mas naquela senhora nem isso. Passada meia hora, a senhora começa a ficar completamente agitada, cheia de dores e diz-me "Quero ir para casa, leve-me para casa". Perante este pedido dela, o meu colega disse-me "Ela vai morrer e está a senti-lo. Ela quer ir embora".

O desespero dela é grande. A aflição dela aflige-nos. A medicação analgésica mal surte efeito. Escolhe uma posição de conforto: toda encolhida com os joelhos flectidos. Continua a pedir para ir para casa.

07h o pulso começa a abrandar. Ela já mal tem forças para se mexer. Tenta falar comigo mas já só consegue sussurrar "Leve-me para casa por favor...". Na cara dela vê-se o desespero de saber que alguma coisa lhe vai acontecer. É angustiante vê-la. Tenho o meu coração muito pequenino. Passo a mão na cabeça e nas mãos na esperança de lhe dar algum conforto. Será que resulta?

Passados 15minutos: extremidades completamente cianosadas e restante pele marmoreada (sinal de má circulação do sangue, ou até mesmo não circulação). Já não fala. Já não mexe. Já não reage nem à dor. Tem uma respiração agónica. 07h30 é declarado o óbito...

Fiquei frustrada por ter visto tudo aquilo. A minha noite ficou "completa". É daquelas situações que não se esquece, porque tinha alguém que aparentemente estava bem, com quem conversei e prestei cuidados e que morre em 1h30...


Foi a minha última doente nesse dia. Eu vi a vida...

3 comentários:

jakín disse...

O triste não será a morte de quem se atravessa à nossa frente...
O triste, o revoltante, é a "desfaçatez" da efemeridade do processo, que não deixa tempo a que, quem morre, se despeça de quem fica...E é quando isto qcontece que, mais do que nunca, não deixes para amanhã, o que podes dizer/fazer/sentir hoje...
Profundas experiências, afilhada...

Ciclograma disse...

Estrelas cadentes que se atravessam no teu caminho... as estrelas caem... transformam-se em estrelas do mar... cara amiga não páres de brilhar!

Um beijo doce! ;)

Anónimo disse...

Orgulho-me da missão dos médicos e enfermeiros que realmente o são de alma e coração.

Muita força para ti!