terça-feira, março 25, 2008

"Dead Again" - da ficção para a realidade


Ficção - Como fã incondicional de "ER", vejo frequentemente as séries. A última série que vi tinha como titulo "Dead again" e era sobre um homem que chega ao serviço de urgência com um brutal enfarte agudo do miocárdio. Inicialmente estável, o Dr. Carter, também responsável por um interno que se encontra com ele neste caso, pede o apoio da cardiologia e já com o médico cardiologista presente, o doente entra em paragem cárdio-respiratória. Ao fim de bastante tempo de reanimação, decide-se certificar o óbito. Enquanto o Dr Carter vai dar a noticia aos filhos do doente, o interno fica na sala com o corpo. Numa questão de minutos, o doente fica com um ritmo desfibrilhável (efeito da ultima adrenalina) e o interno por sua própria autoria decide desfibrilhar (chocar) o doente, revertendo o ritmo para um ritmo sinusal (normal). Contudo, devido a um grande periodo de falta de oxigenação cerebral, fica ligado a um ventilador num estado vegetal... Quando Carter chega, apercebe-se do que aconteceu e fica furioso com o interno, especialmente quando já tinha dado a noticia á familia. Chega a esposa do doente e é explicada a situação. Carter aproveita para perguntar o que a esposa quererá fazer caso o doente entre novamente em paragem cárdio-respiratória, visto que a nivel cerebral o doente não tem viabilidade. Todo este processo de tomada de decisão gera sofrimento á familia. Passadas algumas horas, o doente entra em paragem cárdio-respiratória, e recai sobre a esposa a ordem de não reanimar.


Realidade - 2008, Ano Novo. Um casal inglês vem passar uma férias a Portugal. O Inverno não constitui obstáculo á sua vinda. Tão por cá uns bons dias. A três dias de irem embora, a mulher de 65 anos de idade, começa a andar muito cansada. Apresenta um cansaço fácil quando anda e num dos dias até se deita mais cedo. O marido até achou esquisito, mas pensou ser normal. Último dia de férias: dirigem-se ao aeroporto e passadas umas horas embarcam no avião. Ainda antes de se sentarem no avião, o marido, descontraídamente, arruma algumas das bagagens por cima das cadeiras. Depois de terminada a sua tarefa, olha para trás à procura da sua mulher quando se apercebe que ela está caida inanimada no chão. Não respira e não tem pulso. A VMER é chamada ao local. Ao fim de 13 choques recuperam pulso, mas ventilação não. É transportada ao hospital onde fica ligada ao ventilador.


Eu estou a fazer noite. Entro na sala de reanimação. Do meu lado direito tenho uma "mulher" ventilada. Ao seu lado está um senhor sentado numa cadeira a falar com um médico. "Quanto tempo ela poderá ficar assim?". "Não podemos prever. Pode ser uma questão de horas, dias, meses ou poderá ficar assim ainda muito tempo" - responde o médico. É o marido dela. Eles tinham feito um acordo: não permitir que algum deles ficasse vegetal. O marido sabe o que fazer... Após terminar a conversa com o médico, foge para o corredor e desabafa (chora). Gostava de o confortar, mas não sei o que dizer, nem que o fazer. Dou-lhe espaço, deixo-o sózinho... "Sózinho" no hospital, "sózinho" em Portugal. Ficou durante toda a noite junto a ela. Conversava com ela, chorava junto a ela... Despede-se dela? Parece-me que sim. Inconsolável aguarda pelo filho que vem a caminho de Portugal. Ele sabe o que fazer...

quinta-feira, março 06, 2008

O Desafio da Vida


Gostaria de dar um titulo a este post mas nem sei bem qual. Por um lado porque me ia tornar repetitiva, por outro lado acho feio o outro titulo que me surge. Ainda assim, é melhor escolher para titulo "O Desafio da Vida".

Domingo à noite. São 06h da manhã e já falta pouco para terminar o turno. Tou mortinha por chegar a casa e dormir. Ainda há camas vagas onde me encontro. Até as 08h ainda podem entrar muitos doentes...

Eis que chega uma velhinha. Vai para uma das minhas camas. 91 anos, bem disposta, veio ás urgências porque lhe doia a barriga á 2 dias. Olhando para ela nada faria advinhar que estaria doente. É uma daquelas velhotas todas catitas, que apetece apertar as bochechas e dar mimos. Reservada, só responde ao que lhe é perguntado. Diagnóstico: Isquemia da artéria mesentérica.

Para terem uma noção a artéria mesentérica tem origem directa na artéria aorta (que é simplesmente a maior artéria que temos e digamos que a mais importante). A mesentérica é responsável pela irrigação do intestino grosso. O que acontece nesta situação é que havia uma parte da artéria que não estava a ser irrigada pelo sangue e assim não tinha nutrientes para se manter "viva" assim como também não podia alimentar o intestino. Isto leva à necrose do instestino, ou seja, este morre. A infecção é também uma das complicações associadas. Por vezes quando a isquemia é grande, começa a faltar irrigação sanguinea nos restantes órgãos abdominais. Estes entram em falência, deixam de funcionar. Progressivamente o sangue vai faltando, os órgaos vão morrendo e o desfecho é um só... O tratamente tem de ser numa fase inicial, caso contrário... É como se fosse um enfarte no coração, mas neste caso é no instestino.

Quando esta senhora chegou, tal como ja referi, nada indicava que estava doente. Um colega meu observou de imediato os membros inferiores, porque geralmente costumam estar cianosados, mas naquela senhora nem isso. Passada meia hora, a senhora começa a ficar completamente agitada, cheia de dores e diz-me "Quero ir para casa, leve-me para casa". Perante este pedido dela, o meu colega disse-me "Ela vai morrer e está a senti-lo. Ela quer ir embora".

O desespero dela é grande. A aflição dela aflige-nos. A medicação analgésica mal surte efeito. Escolhe uma posição de conforto: toda encolhida com os joelhos flectidos. Continua a pedir para ir para casa.

07h o pulso começa a abrandar. Ela já mal tem forças para se mexer. Tenta falar comigo mas já só consegue sussurrar "Leve-me para casa por favor...". Na cara dela vê-se o desespero de saber que alguma coisa lhe vai acontecer. É angustiante vê-la. Tenho o meu coração muito pequenino. Passo a mão na cabeça e nas mãos na esperança de lhe dar algum conforto. Será que resulta?

Passados 15minutos: extremidades completamente cianosadas e restante pele marmoreada (sinal de má circulação do sangue, ou até mesmo não circulação). Já não fala. Já não mexe. Já não reage nem à dor. Tem uma respiração agónica. 07h30 é declarado o óbito...

Fiquei frustrada por ter visto tudo aquilo. A minha noite ficou "completa". É daquelas situações que não se esquece, porque tinha alguém que aparentemente estava bem, com quem conversei e prestei cuidados e que morre em 1h30...


Foi a minha última doente nesse dia. Eu vi a vida...